26.1.05

Política sem Política

Num programa que funciona como uma espécie de pêlo macio onde Pulgas e Carraças se digladiam por um naco de epiderme bem irrigada e fresquinha; onde um senhor Professor confunde um segundo Professor com um terceiro Professor, um economista ao que parece conceituado, e até ex-ministro, diz qualquer coisa como isto: Os políticos tinham de se preocupar em mudar o que dependia deles ser mudado. O exemplo era - mais uma vez - a administração pública. Tudo o mais estaria fora do alcance dos políticos, pois dependeria inevitavelmente do espaço económico e social em que o país estava inserido. Nada a fazer portanto.


O que o prestigiado economista disse, outros já o disseram de forma ainda mais despudorada. Será que o “senhor” economista não se recorda que tal espaço económico e social onde o país está inserido foi, antes de mais nada, uma decisão política?

Espanta-me esta tendência, cada vez mais sufocante, de entender (ou deixar) a Economia como se fosse não só uma ciência exacta – o que já por si é falacioso – mas, pior ainda, como um substituto (mais) fiável da política. A mensagem é mais ou menos esta «Que bom seria que os políticos deixassem de fazer políticas com base em ideologias e passassem a apenas ouvir os economistas. Eles (nós) são que sabem (sabemos) disto.»

Para os profetas do delírio neoliberal, que falam da “economia” como um dogma, o mundo actual era e é inevitável. E face a esse desígnio “divino”, é preciso que nos adaptemos. Para que tal ocorra, “sem espinhos”, temos que apolitizar a vida pública: fazendo dos políticos meros “instrumentos” desta “ciência divina”. Eis a solução. Mas mesmo esta é temporária. Depois não haverá mais necessidade de políticos. Amanhã o mercado globalista liberal cantará, uma nova hossana, para nós: Tecnocratas de todo o mundo, uni-vos!

Na realidade trata-se de um sujeição dos políticos não à economia como ciência, mas sim a doutrinas económicas ou melhor – a uma doutrina económica que o poder económico aprova.

Os delirantes profetas cedo perceberam que tinham de “vender o seu fedorento peixe” como quem defende uma “pura e virtuosa dama”. Ou seja sublimar, ideologia em ciência e ganhar como aditivo a redução imediata de todas as outras ideologias a isso mesmo: meras ideologias. Mais estranha é a “sensação” de que os políticos que desejem chegar ao poder, pior do que sentirem-se embaraçados, têm medo de ter/defender uma ideologia. Entende-se: querem agradar a deus e ao diabo e as ideologias causam anticorpos. Além do mais, como contrapor com ideologias a uma ciência? (a tal economia dogmática portanto)

Tem razão Vítor Malheiros quando escreve criticando o medo de Sócrates e do PS de defender claramente uma (alguma, ínfima) ideologia:

O que se espera de um partido político é que ele possua de facto uma ideologia – que possua uma visão do mundo e objectivos para a sua mudança, que possua um sistema de ideias racionais e práticas que (entre outras coisas) nos permita ter uma ideia da sua actuação futura, caso ele seja eleito para fazer leis e formar governo
(…)
Um partido com a ideologia na gaveta é um grupo oportunista que não pode oferecer qualquer garantia de coerência (…)

Para eleger um homem ou uma mulher não nos basta saber se é hábil ou inteligente. Queremos saber para onde vai, o que o/a faz mover, qual é o seu sonho. A ideologia é a ambição que os partidos têm para a sociedade, o seu sonho (as vezes o nosso pesadelo).


O pior é que são os próprios políticos que permitem tal coisa. Curvaram-se perante a “tal ciência” que prevê e diz o que é inevitável. Como diz Taguieff:

«Os políticos da direita e da esquerda, convertidos ao para-a-frentismo esgotam-se em vão a correr atrás dos profissionais da velocidade, esquecendo-se que o seu papel não é imitar as atitudes e os comportamentos dos especialistas de finança e de tecnologia»*

E o que fazer?
Penso que é preciso começar a desmistificar este discurso neoliberal, dos mandamentos da pseudo ciência económica. A maneira como falam e citam os economistas que lhes convém tem de ser denunciada. É preciso dizer que a economia não é uma ciência exacta (existem ciências exactas?) nem unânime.

Se a economia fosse uma ciência feita de unanimidade, se este caminho que nos mandam percorrer fosse de forma cientificamente provada inevitável, então não seria um contra-senso haver economistas de esquerda ou até economistas conservadores? É caso para dizer que seria como haver bispos ateus.

Relativamente a Portugal, repare-se como é diferente o eco que os meios de comunicação dão de cada vez que um economista do bloco central (PSD ou do PS) fala sobre economia, finanças, emprego, mercado. É que nessas alturas, quando tal personalidade fala, fá-lo sempre como economista. Já quando é um economista de um partido de esquerda , fá-lo sempre na “mera” qualidade de político.

Na realidade a “coisa” até é pior que isso. Como o senso comum “encaixou” que os economistas são os da ciência e os políticos são os das parangonas, a estratégia é simplesmente fazer crer que não há economistas de esquerda.

Proponho, a título ilustrativo, um teste: Pergunte-se as pessoas na rua se sabem qual é a profissão de em Louçã ou Carvalhas. Aposto que poucos se lembrarão que Carvalhas é economista e que – cúmulo dos cúmulos – Louçã até é professor universitário da mesma “cristalina ciência”.

O que fazer com eles? Propor que a ordem dos economistas os “excomungue”?

Que os políticos tenham ideologias, que as defendam e que falem, sempre como políticos, eis o que se deseja.

Quanto aos supostos economistas, discursistas neoliberais e toda a restante trupe de “gestores” e “empresários” “bem sucedidos”, tão atentamente escutados pelos média, que bom seria se descessem da sua “ magna ciência”. Talvez percebessem finalmente que poucas coisas há mais nobres que a política. E que esta necessariamente tem de ser feita com ideologias.


* in "resistir ao para-a-frentismo"

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