6.3.05

Exigências de Uma Certa Forma de Olhar

Numa densa floresta, à sombra das suas árvores frondosas e da humidade que ela proporciona, crescerão musgos, fetos, muitos fungos (entre os quais alguns cogumelos perigosamente venenosos), muitas ervas daninhas e outras até mais altas mas não menos rasteiras. Será então que deixamos de estar diante de uma floresta? Será que a sua contemplação já não impõe o mesmo respeito? Será que por plantas trepadeiras treparem pelas gigantescas árvores acima, estas últimas perdem a sua nobreza e quiçá passam a merecer que sejam cortadas para servir de lenha? A resposta parece evidente.

Ao contrário, muitas vezes, diante do mais agreste deserto, temos tendência para salientar a beleza de qualquer arbusto ou de qualquer Welwitschia Mirabilis.

Os microscópios são certamente instrumentos úteis, mas não será um pouco inútil ir à procura de vírus, bactérias e fungos na epiderme que cobre as mãos de um pianista, no exacto momento em que ele toca uma sonata?

Como dizia um poeta tropicalista: “De perto ninguém é normal”

Alguns amigos têm mostrado ultimamente alguma preocupação em procurar e encontrar os “defeitos”, ”as corrupções” “as arrogâncias” da chamada “esquerda”. Esta atitude cria muitas vezes a dúvida e a polémica nos taxionomistas apressados que por aí andam. Uns não hesitam em classificar esses amigos como sendo de “direita”. Outros parecem perceber nesta busca uma pretensão de “puritanismo”, de “superioridade moral” típica da "extrema-esquerda".

A extrema-esquerda nunca se quer “misturar”, esforçando-se por mostra-lo e apontando o dedo a todos os que dizendo-se de esquerda caiam em “modas”. São estes que estão à espera que toda a esquerda seja o cúmulo da virtude, da honestidade intelectual suprema, que se comporte com o máximo pudor e que nunca caia no modus operandi de alguma direita. Dá a impressão que para eles todos os que não estão à altura do tal homem-novo não são dignos de estar do lado de cá e por isso têm de ser identificados e extirpados.

Eu não acredito no homem-novo. Os homens que temos agora são estes e é com estes que temos de lutar e cooperar e trabalhar. Não entremos em canonizações de esquerda. Os homens de esquerda têm tantos defeitos e fraquezas como qualquer um outro. E portanto não é de espantar que o modus operandi (populismo, demagogia, mediatismo, verbo fácil) de alguma esquerda seja muito semelhante ao de alguma direita. Porque- nunca é de mais dizer- não há só uma esquerda, assim como não há só uma direita. Além do mais, sinceramente, não acho que haja a priori uma superioridade moral da esquerda. E por isso é natural que se encontrem tantas “ervas daninhas” na esquerda, como se encontram na “direita”. Então porquê apontar somente o dedo às ervas canhotas?

Termino com uma tirada de Camus aquando de uma sua exposição feita num convento de dominicanos em 1948:

“Estou convencido que o cristão tem muitas obrigações, mas não compete ao que as rejeita lembrar a existência dessas mesmas obrigações aquele que as reconhece. Se há alguém que possa exigir alguma coisa a um cristão, será o próprio cristão. Se eu, no final desta exposição, me permitisse reivindicar de vós quaisquer deveres, seriam tão-somente aqueles que é necessário exigir a todo o homem de hoje, seja ele ou não cristão”

E assim, à maneira de Camus, espero que aqueles que são rigorosos e exigentes, mas justos, exijam dos “homens de esquerda” apenas e exactamente o mesmo que exigem de qualquer outro homem de hoje.

6 Comments:

At 5:50 PM, Blogger Horácio said...

Concordo contigo Sacha. Então que se exija dos "homens de esquerda". o mesmo que exigiríamos de qualquer outro homem. :-).

Horácio

 
At 6:14 PM, Blogger Sacha said...

Que se exija de todos o mesmo. Em termos morais e eticos. Mas que não se aceite a total relatividade de tudo.

E por fim que seja possível voltar as questões de conteúdo ao invés de permanecermos nas questões da forma. Para isso- mais uma- é vez necessário que não seja tudo relativo.

 
At 6:53 PM, Anonymous Anonymous said...

E às mulheres, nada se exige?...

Ana

 
At 7:12 PM, Blogger Sacha said...

Boa pergunta Ana.
Mas Nessa questão penso que deve ser uma mulher a ter a primeira palavra.

Fico à espera

 
At 9:51 PM, Anonymous Anonymous said...

:)
Exija-se das mulheres, governantes ou anónimas, que lembrem aos homens a urgência e a naturalidade da palavra Humanidade. Acabe-se com o Homem e instaure-se os homens e as mulheres ou as mulheres e os homens, sem maiúsculas mas sempre plural.

Ana

 
At 10:04 PM, Blogger Sacha said...

Que bom seria de facto que a palavra Humanidade fosse urgente e inadiavelmente sentida...
Que bom seria.

 

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