Umberto Eco: Sobre o espectáculo desportivo
Pelé, Patrick Lichfield, 2003
Do jogo.
Domina a actividade desportiva a ideia do desperdício
(... )
Ora este desperdício - que fique bem claro - é profundamente são. É o desperdício próprio do jogo. E o homem, como todo o animal, tem a necessidade física e psíquica de jogar.Há portanto, um desperdício lúdico ao qual não podemos renunciar: exercitá-lo significa ser-se livre e libertar-se da tirania do trabalho indispensável. Se ao pé de mim, que arremesso a pedra, um outro se junta para arremessar ainda mais longe, o jogo toma a forma de competição.
Da competição
Também ela é um desperdício: de energia física e de inteligência ( ...) mas este desperdício lúdico resolve-se num ganho (... ) as competições desenvolvem e controlam a competitividade, reconduzem a agressividade originária a sistema, a força bruta a inteligência.
Mas já nestas definições se aninha o caruncho que mina o gesto nas raízes: a competição disciplina e neutraliza as forças da praxis. Reduz um excesso de acção, mas de facto é um mecanismo para neutralizar a acção.
Do espectáculo desportivo
Deste núcleo de equívoca sanidade (... ) amadurecem as primeiras degenerações da competição: com a criação de seres humanos votados a competição. O atleta é já um ser que hipertrofiou um único órgão, que faz do seu corpo a sede e a nascente exclusiva de um jogo contínuo: o atleta é um monstro ( ...) É a geisha de pé, comprimido e atrofiado, votada à instrumentalização total.
Mas o atleta como monstro, nasce no momento em que o desporto é elevado ao quadrado: isto é, quando o desporto, de jogo que era jogado na primeira pessoa, se torna numa espécie de discurso sobre o jogo, ou melhor o jogo como espectáculo para outros (... ) o desperdício ao quadrado é o espectáculo desportivo.
Se o desporto praticado é saúde, o desporto visto é a mistificação da saúde. Quando vejo os outros jogarem não faço nada de são, e apenas vagamente me deleito com a sanidade alheia (... )
Claro que quem vê o desporto praticado pelos outros se excita: e grita e mexe-se e por isso faz exercício físico e psíquico e reduz a agressividade e disciplina a competitividade. Mas esta redução não é compensada pela, como ao fazer desporto, por um acréscimo de energias e por um adquirido controle e domínio sobre si.
(... )
Os elementos de disciplinamento da competitividade , que no desporto praticado tinha os dois rostos do acrescentamento e da perda da humanidade, no voyeurismo desportivo tem só um, o negativo. O desporto apresenta-se então, como foi durante séculos, qual instrumentum regni. São coisa obvias: os circenses põem travão às energias incontroláveis da multidão.
Mas este desporto ao quadrado( ...) gera um desporto ao cubo, que é o discurso sobre o desporto enquanto visto.
(continua...)
Umberto Eco, Conversa Desportiva, (1969)
in Viagem na Irrealidade Quotidiana.
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