18.1.05

Lendo Taguieff III

Sejamos claros: o multiculturalismo, feito política, consiste essencialmente em reetnizar o espaço social, em legalizar a sua fragmentação, em abandonar a sua gestão aos dirigentes comunitários ou identitários. (…)

O multiculturalismo normativo não pode senão acentuar e endurecer as identidades de grupos, bem como legitimar o fechamento de cada «comunidade» sobre si própria, ao passo que a integração republicana visa, por intermédio de diversos modos de acção favorecer a proximidade de atitudes e comportamentos, com base numa comunidade de direitos, de deveres e obrigações recíprocos. O multiculturalismo consiste na imposição a todos os indivíduos de uma identidade de grupo determinada pela sua nascença, definida pelas suas origens. Realiza-se sob a forma de sociedade multicomunitarista, exercendo cada «comunidade» uma forte influência sobre os seus «membros». Aquilo de que se acusa, com razão, o nacionalismo étnico encontra-se aí também: a opressão causada pela busca de uma impossível homogeneidade em nome da ideia-força de uma identidade comum

(…)
O relativismo cultural radical ,…, vem legitimar qualquer empreendimento identitário, visto que é atribuído a uma minoria supostamente vitimizada, movida por uma vontade independentista e que sabe apresentar-se como combatente anticolonialista. Alimenta assim as reivindicações insaciáveis e as tendências exclusivistas dessa minoria. Os empresários etnonacionalistas sabem isso, tanto mais que são muitas vezes «intelectuais» que entraram na política a partir da invenção ou da reinvenção de uma identidade colectiva dita cultural ou étnica. Aos vendedores e regateiros juntam-se os profissionais da etnicidade traficada, manipulada .

(…)

A aparição de um novo tipo de conflitos ,…, proporcionados pelo enfraquecimento dos Estados-nações, pelo duplo efeito da uma fragmentação interna crescente e dos sistemas de obstáculos criados na órbita da globalização das trocas comerciais: o seu tipo puro pode ser ilustrado pelo antagonismo entre um Estado existente, de legitimidade enfraquecida (seja ou não um Estado de direito) e um movimento separatista, as vezes até dito de libertação, dotado de uma legitimidade máxima.

(…)

O ideal de independência continua a ser um dos ideais mais fortemente mobilizadores para todos os povos, o que equivale a reconhecer que os principais conflitos actuais derivam de conflitos de soberania, Mas também é preciso reconhecer que, na falta de um modelo republicano e do ideal de nação cívica, a exigência de soberania se mistura o mais das vezes com um mito étnico e uma vassalagem religiosa, que lhe conferem uma base imaginária e recursos simbólicos. As tiranias da etnicidade multiplicam-se nas «zonas cinzentas» que constituem o «mundo inútil», aquele que não interessa ao mondo das potências globalizantes.

(…) para sair do túnel em chamas, seria preciso começar por dessacralizar os conflitos, por desmistificar as suas razões profundas e o que está neles em jogo, por desetnicizar os espíritos, por reinscrever os antagonismos no campo prosaico dos interesses e das ambições de poder. Numa palavra: repolitizá-los


in resistir ao Para-a-frentismo, Pierre-Andre Taguieff

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