6.2.05

Coisas Lidas: Do fingimento, por Augusto Santos Silva

[...] os jornalistas, pretendendo definir o seu "sentido" ou "resultado" objectivo, através de uma discussão em circuito fechado, entre jornalistas elevados ao estatuto de comentadores autorizados e segundo as regras tácitas da sua cultura profissional.

Essa discussão opera normalmente a dois tempos. O primeiro é a desqualificação global e sumária do perfil e desempenho dos contendores políticos. O segundo é a reelaboração de preferências, afinidades ou estados de alma próprios (de cada comentador e de cada posição de comentador no sistema dos "media") como juízos independentes e objectivos.

Desqualificação global: foi "chato", demasiado "cordato", "previsível", nenhum "surpreendeu", as respostas pareciam programadas, sem vivacidade, diversas questões-chave ficaram por abordar e outras foram tocadas pela rama. Mas como se pode criticar um candidato a primeiro-ministro por ter ignorado a política externa e de defesa, a integração europeia, a educação, a saúde ou a reforma do sistema político, se ele tinha de responder a perguntas de um painel de jornalistas e nenhum deles o inquiriu sobre isso? [...] E como se pode castigar os debatentes por falta de polémica, se estavam proibidos de dialogar um com o outro? E como se pode (hipocritamente) denunciar a colonização da discussão política pelos boatos e insinuações, se foram logo esses os temas iniciais dos inquiridores?

Ouvimos, depois, nos debates sobre o debate, o extraordinário argumento da ausência de novidade. Chegou-se a dizer que não valeria nada como notícia, porque não tinha ocorrido nada de novo. Como se a finalidade dos debates públicos fosse a execução em tempo real de truques de magia, e não a apresentação competitiva das mensagens políticas fortes de candidatos eleitorais! É caso para recordar a alguns jornalistas-comentadores que estamos a escolher os novos Parlamento e Governo, e não propriamente a descobrir um émulo para Luís de Matos.

Operada a desqualificação global, vem o fingimento. A gente ouve cada um dos comentadores responder à sacrossanta (e sumaríssima) pergunta "então quem ganhou?" e não demora três segundos a perceber que, como qualquer outro mortal, ele segue a sua escala de preferências. Quem se acha superior a todos, a todos castiga. Quem prefere outro partido que não os dois representados desqualifica estes dois. Quem se aproxima mais de um contendor tende a favorecê-lo na apreciação. Quem conclui que a agenda política que tenta impor no espaço público ainda não foi desta que condicionou o "mainstream" do sistema partidário reage em conformidade (é o que acontece com os hipervalorizados especialistas do jornalismo dito económico, que, enquanto não arrancarem dos políticos promessas de despedimentos maciços, subidas galopantes de impostos e reduções draconianas de direitos sociais, dirão sempre deles cobras e lagartos).
[...]

Não haveria problema de maior nisto, não fosse o caso de a encenação destas opiniões se fazer (a) como se fossem juízos distanciados, independentes e objectivos, e (b) como se fosse possível determinar pela conjugação deles "o" resultado legítimo do debate (de preferível traduzível numa manchete).

[...]Nem vejo (e esse é o ponto principal) como é que a condição profissional de jornalista pode, no plano da produção de opinião política, ser garantia suficiente ou adicional de competência e isenção.

[...]As opiniões sobre os conteúdos do debate político são opiniões políticas. Não são apreciações técnicas, nem são factos objectivos. Por isso mesmo, a sua expressão deve obedecer aos requisitos da opinião em democracia: ser livre, ser plural, ser escrutinável. Não é juízo final sobre coisa nenhuma. E não deve ser confundida com a informação jornalística sobre factos. Se a direcção de um jornal entende que A ou B ganhou um debate, pelas razões X, Y e Z, dispõe do espaço de opinião próprio do seu jornal para dizê-lo. Não pode é converter essa sua opinião, ou intuição, numa apreciação incontroversa, proclamável como tal

[...] a presunção, tão característica do nosso meio jornalístico, de que a opinião dos jornalistas-comentadores é intrinsecamente mais legítima do que as dos restantes intervenientes no espaço público e que, por isso, pode haver uma espécie de juízo final mediático sobre as controvérsias e os desempenhos políticos, essa presunção não é uma prova de maturidade, mas pelo contrário de infantilidade do nosso sistema de comunicação.

ler texto na integra

0 Comments:

Post a Comment

<< Home