2.2.05

O boato e a insinuação: do excesso de pudor à falta dele.

O boato surge. Ninguém sabe de onde, propaga-se em todas as direcções: de boca em boca, das elites ao Zézinho, ferve sempre sem autoria, alimentando a barriga daqueles que se deleitam com as "fofoquices" mais ou menos fedorentas.

A insinuação é diferente. É sempre possível dizer quem insinua (o sujeito da insinuação).

O problema é que a insinuação precisa de um “outro” - de alguém que a perceba ou subentenda aquilo que não foi dito mas que está implícito - para ter o seu “feed back” e até para ela, a insinuação, existir como tal. Neste sentido a insinuação engendra-se entre um sujeito (autor) e um outro, o “sujeito do subentendido”: ambos cientes do “alguma coisa mais” para além do dito.

Ou seja: a insinuação só tem plena eficácia quando já antes medra o boato.


É o famoso “vocês sabem do que estou a falar” ou o não menos famoso “você sabe que eu sei que você sabe que eu sei”.


Como um fungo que ataca um imunodeprimido, o boato prolifera. E porquê? Porque existe o falso pudor. E a insinuação aproveita-se deste pudor - deste tempero que se cola à boca - para existir e fazer-se ouvir como tal.

Quando se diz que alguém insinuou é preciso que se diga o que insinuou. Insinua-se que “alguém fez assim” ou “outrem é assado”. Ou então não se insinuou nada.

Ora, com as raras excepções de Miguel Sousa Tavares ontem na TVI, e de Carlos Magno hoje na antena 1, não ouvi mais ninguém chamar “os bois pelos nomes”

Os insinuadores, os meios que difundem a insinuação ou que a inventam ( ao distorcer, descontextualizar ou truncar uma frase tornando-a insinuação) e os visados ( os verdadeiros, os supostos e os parasitarios) têm em comum três coisas: a primeira é o falso pudor. A outra é mais inquietante: É que no fundo todos acham (têm o pré-conceito) que o povo, esse famoso Zé é preconceituoso. E finalmente a terceira: todos se tentam aproveitar.

E por isso que tudo se torna mais difuso e triste: é que a determinada altura não mais é possível saber quem insinuou e quem é vitima. Todos são vitimas e todos insinuam. Para delicia dos média.

Dizer que alguém não tem o direito de falar do aborto porque não é pai, é certamente uma frase infeliz, para não lhe chamar estúpida. É no entanto compreensível no calor de uma discussão ou de um debate. Daí até dizer, como já li, que quem a proferiu fez insinuações sobre a vida privada e tendências sexuais do visado vai uma grande distância. Haja “feed-back” da parte dos “sujeitos do subentendido” (compreensão ou inteligência) o quanto baste para não transformar a vida num jogo de insinuações.

O problema é que, conscientes do boato, todos parecem andar à procura de insinuações para confirmar ou fazerem proliferar o boato. Tudo parece, então, virar insinuação.

Um cartaz negativista e triste, no estilo a que já nos habituou a JSD, também contém afinal insinuações sobre a sexualidade do visado.

A culpa é de todos. E é sobretudo- nem pode deixar de ser- dos que gostam dos boatos. Que o alimentaram ou toleraram, que quiseram ouvir o “diz que me disse”. Que se riram entre dentes e que reproduziram o “disseram-me de fonte segura” . Depois fingem-se chocados quando o boato passa a insinuação. Haja tolerância quanto baste para tanta hipocrisia.

É que o local onde surgem esses boatos não será certamente na “Tasca do Chico”. É nos salões de chá onde as elites – umas endinheiradas outras decadentes, umas intelectuais e outras folclóricas – se encontram para comer generosas fatias de bolo inglês e sorver com indiferença a quente infusão.

Um brasileiro ou um português vivendo no Brasil e acabadinho de chegar a Portugal perceberia as tais frases como insinuações?

Frase infeliz: Você não tem o direito de falar de vida, porque não é pai.
Leitura: Chico insinuou que Paulo era gay.

Frase infeliz, em cartaz triste: Sabe mesmo que é este homem?
Leitura: a jota insinuou que José era gay.

Metáfora infeliz: “O outro candidato tem outros colos. Estes colos sabem bem".
Leitura: o Pedro insinuou que José era gay.

Mas que obsessão é esta?

Quem afinal permite que os boatos proliferem?
Quem interpreta e enquadra uma frase como sendo insinuações?

Que elites “pensantes” são estas?


Pode parecer estranho, mas tenho a impressão de que num país do terceiro mundo o boato não nascia. Porque, por incrível que pareça os média ainda não se tabloidizaram e portanto ainda não dominam está fina técnica de tudo esvaziar para tudo vampirizar. Porque o insinuador não se faria de vitima porque isso soaria a cobardia e porque o visado sem nenhum falso pudor ou desmentia ou assumia claramente o boato. Ou seja, não haveria esta medíocre “tempero” com as palavras.

É de “bicha” que se está a falar? Como responderia o “famoso” Enéas se fosse ele o visado?

Adivinho que seria mais ou menos assim:

Dizem que eu sou bicha. Mas eu sou bicha não. Eu gosto mesmo é de mulhé, gostosa, com corpo sarado e coxa grossa. Agora que está feito o esclarecimento, vamos discutir o plano de governo? O meu nome é Enéas!!!

E cada um iria a sua vida.


Sacha & Horácio

1 Comments:

At 10:45 PM, Anonymous Anonymous said...

Uma das coisas que mais irrita é ab-uso indevido do princípio da identidade. Gente viciada no "mesmo" escreve estas coisas redutoras e faceis:

"O interessante é ver como nas sondagens o BE recebe as intenções de voto dos bairros mais ricos das cidades. Não admira para quem conheça a sua "composição social", como se dizia no passado, assim como o conteudo das suas propostas. O BE é, com o PP, um partido de gente que está bem na vida e dos seus filhos." JPP http://jornal.publico.pt/2005/02/03/EspacoPublico/O01.html
(não admira...)
Quando se torna tudo no mesmo, quando o mesmo é tudo o que vemos, pouco resta a fazer..

Acerca do artigo muito dos pontos levantados por JPP já têm sido debatidos aqui, no Abre-Surdo. Sinceramente pouco acrescenta. (não admira)

Horácio

 

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