9.6.05

O "duelo" entre Elis e Hermeto no Festival de Jazz de Montreux em 1979




(….) A grande estrela da “Noite Brasileira” era Elis Regina, que depois de 15 anos tinha saído da polygram para assinar com o seu velho amigo André Midani na Warner. A gravação de um disco ao vivo em Montreux era parte importante do novo contrato, para dar um impulso a sua carreira internacional.(…) Com César Camargo Mariano [ pianista, arranjista e marido] e um pequeno grupo de músicos de alto nível (…) Elis montou um show com seus grandes sucessos

(…)A lotação do velho Cassino de Montreux estava esgotada há dias e Hermeto Pascoal, vindo de gravações com Miles Davis, e idolatrado nos meios jazzísticos faria a primeira parte da “Noite Brasileira”.



Depois do ensaio , impressionado com a multidão que queria ver o show e não tinha entradas, o director do festival Claude Nobs pressionou o seu velho amigo André que convenceu Elis a fazer uma matinê-extra, às três da tarde no dia do show. Na matinê superlotada, Elis arrasou. Cantou com segurança, técnica e discreta emoção um repertório de alto nível(…). Fez o show como se fosse um ensaio geral. Como a preparação para a grande noite.



A noite, no show de abertura, Hermeto Pascoal e os seus músicos fizeram a casa vir abaixo, foram aplaudidos de pé durante 15 minutos, com o público gritando e exigindo mais.



Depois de um intervalo de meia hora, com uma orquídea azul nos cabelos, como Billie Holiday, Elis entrou no palco do Cassino de Montreux. Com um vestido longo e um penteado que a faziam mais velha, Elis parecia nervosa e tensa, cansada e intimidada, quando começou a cantar. (…) Não cantava mal, cantava com precisão e cautela, sem tentar qualquer efeito. Na coxia, André entrou em pânico, pensou que Elis ia desmaiar. Entrou em palco com um copo de água que ela bebeu imediatamente. O Show continuou.

(…)No palco Elis sofria intensamente, como se não estivesse fazendo o que mais gostava na vida, mas cumprindo um doloroso dever. O show terminou com muitos aplausos mas muito menos intensos que os de Hermeto. Elis estava exausta e saiu rapidamente do palco.

Na meio da gritaria, Claude chama de volta Hermeto Pascoal, que tinha assistido todo o show de Elis na coxia.

Recebido com uma espectacular ovação, o bruxo albino se encaminhou vitorioso para o piano enquanto, de surpresa, Claude chamava de volta Elis Regina! Sempre altamente competitiva, Elis sabia que tinha perdido a noite para Hermeto. Frustrada e furiosa, entrou no palco pisando duro e sorrindo tensa para o público.





Silencio total, piano e voz. Hermeto começa a tocar “Corcovado” e quando Elis começa a cantar, suas harmonias começam a se transformar, dissonâncias surpreendentes começam a brotar do piano, é cada vez mais difícil para Elis – ou para qualquer cantor do mundo – se manter dentro da mesma tonalidade, tantas e tão sofisticadas são as transformações que Hermeto impõe, tornando o velho clássico quase irreconhecível, genialmente irreconhecível. E Elis lá, respondendo a todos os saques do bruxo, com uma precisão que o espantava e o fazia mudar ainda mais os rumos de uma canção não ensaiada.





Na corda bamba e sem rede, Elis cantava como uma bailarina, como uma guerreira, como um músico. Hermeto arregalava seus olhos vermelhos atrás dos óculos. Elis crescia a cada nota, à cada frase de seus improvisos e scats, a cada compasso de seu duelo com Hermeto. Foram delirantemente aplaudidos.

Quando Hermeto começou a tocar “garota de ipanema” ( que Elis odiava e jurava que jamais cantaria em sua vida) ela baqueou. Mas logo se recuperou e cantou todo o vigor, como se fosse a última música de sua vida, vitou a música pelo avesso(…) imitando uma menininha dengosa, rindo e debochando, provocou o Hermeto, voou com ele diante da plateia electrizada.

Com o público em pé, “Asa branca”, Elis e Hermeto no round final, o baião de Luís gonzaga em ambiente free-jazz e atonal, harmonias jamais sonhadas se cruzando com fraseados audaciosos de Elis, trocas bruscas de ritmos e andamento, propostas e respostas, tiros cruzados, arte musical de altíssimo nível protagonizada por dois virtuosos.

Ao meu lado, meu velho amigo Nesuhi Ertgun (…) experimentado crítico de jazz, que acompanhou a carreira de Miles Davis e outros génios,(…) disse que raras vezes tinha testemunhado um dueto tão emocionado, tão técnico, tão audacioso. Saiu do Cassino eufórico, me convidando para celebrarmos num jantar com André e Elis. Festejada por Nesuhi, Elis foi a contragosto, quase não falou, mas disse para André, ameaçadora: “Esse disco não vai sair, não é?”

[Epílogo]


(…) Elis sabia que o disco ao vivo em Montreux que poderia impulsionar a sua carreira, internacional não sairia. Porque ela não queria, porque tirando os números com Hermeto, ela achava que o resto não valia a pena, não tinha cantado bem. Achava que tinha chutado um pênalti para fora. De volta ao Brasil exigiu de André um juramento de que nunca lançaria aquela gravação, nunca, nem depois que ela morresse. Elis morreu pouco depois aos 36 anos e André não pensou mais no assunto. Até que uma tarde, dois anos depois, André pensava em Elis quando sentiu um arrepio e se lembrou: o show dela à tarde em Montreux, o show-extra que acabou exaurindo-a e prejudicando sua perfomance nocturna, tinha sido muito bom….e também tinha sido gravado!




Pediu as fitas e sozinho no seu escritório ouviu e chorou e ouviu e chorou, se lembrou de tudo e decidiu, por amor e admiração – e justiça- contrariar o juramento ao pedido de Elis feito no calor da emoção e da decepção da noite fatídica em Montreux. E constatou que sim, a performance dela com Hermeto era realmente extraordinária, e até ela, mesmo furiosa ( com ela mesma) depois do show reconhecera. André seleccionou cinco faixas do show à tarde e juntou-as às três com Hermeto num LP lançado discretamente e sem maiores repercussões como “Elis em Montreux”. (….) disco histórico.


texto de Nelson Motta, retirado das notas da brochura da reedição remasterizada do álbum "Elis Regina - Montreux Jazz Festival", colecção Warner Arquivos, Warner. Outubro 2001.

1 Comments:

At 8:55 PM, Anonymous Anonymous said...

Assiti ao "duelo" num especial transmitido pela Rede Minas de TV sobre o Hermeto Pascoal. Todo o documentário é fascinante, mas o ápice é quando Elis e Hermeto duelam no palco. Ali percebe-se a improvisação. Quando assisti esta cena, execução de Asa Branca, fui arrebatado da poltrona ao intuir que o Hermeto não tava nem aí se a Elis ia dar conta, e que a Elis ia muito além de dar conta do recado e ainda zombava do Hermeto. É impressionante o que eles fizeram com esse clássico da MPB que um mortal qualquer jamais sonharia em ao menos solfejar de maneira diferente a meldia já sedimentada nas consciências. O som é empenado e fascinante. Gostaría muito de comprar este disco da Elis, será que eu acho aqui em BH?

 

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