27.9.04

Palavras dos outros: António Manuel Hespanha

Os "Filhos de Rousseau" Têm as Costas Largas

A generalidade dos comentadores estabelecidos vem elegendo como culpados de quase todo o mal do mundo os "filhos de Rousseau". Querem designar assim os que entendem que tem que haver algum governo; e que é melhor que esse governo provenha de um sujeito que se sabe quem é - nem que seja para o criticar - do que de entidades sem lugar, sem nome, sem cara, como é o "mercado", a "globalização", o "país real". Essa entidade de quem os "filhos de Rousseau" esperam uma certa racionalização da desordem estabelecida é o Estado.

Claro que o Estado, na sua curta vida de dois séculos, foi sempre razoavelmente mau: planificou mal, executou pior, foi arrogante e abusivo no exercício do poder. Porém, isto aconteceu tanto mais quanto a ideia original de Estado se corrompeu. De facto, na ideia original, o Estado devia ter essa força toda porque ele era a encarnação da vontade geral ou, pelo menos, generalizada. E, por isso, os revolucionários sempre partiram do princípio de que o Estado, por ser poderoso, tinha que ser democrático.

Desta paixão estadualista surgiu a Europa que nós conhecemos. Muito do que temos de bom veio da mão do Estado ou foi por ele decisivamente impulsionado - as estradas e caminhos-de-ferro, o fomento da economia, a generalização do ensino, da saúde e da previdência, a protecção dos mais fracos e, já agora, a ordem pública e a defesa externa, E, tanto isto marcou as nossas vidas que, quando nos queixamos de que algo não vai bem, queixamo-nos ao Estado, ou queixamo-nos do Estado. Claro que dele também nos veio muito de mal. Ditaduras, violação de direitos, guerras, protecção de interesses camuflados de públicos, corrupção, desperdício e má gestão.

De tudo isto, a "nova direita" costuma eleger como herança de Rousseau os totalitarismos modernos: o nazismo e o estalinismo (ficando o maoísmo um pouco mais esquecido, por compreensíveis nostalgias de muitos dos nossos liberais mais evidentes). Quando (finalmente) ataca o totalitarismo, a direita tem razão. No entanto, o que é preciso notar é que a ditadura surge quando e, só quando, o projecto revolucionário de Estado é amputado da sua componente democrática. Componente que inclui não apenas a liberdade de decidir, mas também a criação de condições para decidir livremente. Fomentando a igualdade, desenvolvendo a cultura, garantindo a pluralidade, fomentando o pensamento crítico, acarinhando - como propunha o liberal Stuart Mill - os extravagantes e os dissidentes.

Os privados podem, naturalmente, fazer por tudo isto. O voluntariado, as ONGs, as Igrejas, as fundações, o mecenato científico e cultural. Mas, por muito que lhes creditemos, não foram eles quem fez o essencial da sociedade de bem-estar. Foi a mão orientadora (e pagadora) do Estado.

Não de um Estado ideal, ocupado apenas por sacerdotes virtuosos do bem público. Não! A mão do Estado que temos tido! Ou seja, de um Estado que - soe ou não isto a panfletário - tem estado quase continuamente ocupado pelos poderosos da sociedade civil, por alguma decência pública que estes, na situação, tenham que ter. Claro que este não era o Estado de Rousseau. Mas é este - o Estado deles - que os liberais conservadores nos atiram à cara.

A alternativa ao Estado é o não-governo. Cada um a fazer pela vidinha. Claro que a vidinha de uns não lhes permite que façam muito por ela. Mas a vidona de outros faz-se mesmo à custa destas disparidades. Ou seja, a situação de desregramento só desgoverna a vida de uns. Em contrapartida, outros governam-se justamente com o desgoverno.

Resta-nos sempre ir aprendendo com os obsessivos esforços educativos dos liberais, que sensatamente crêem que eles é que sabem como é que nós devemos saber e fazer. Todas as semanas, nas suas colunas de jornal, lá estão eles a ensinar-nos a pensar, a sentir, a comportarmo-nos, já tendo um chegado mesmo à maneira de nos vestirmos. Tudo muito liberalmente, claro...

António Manuel Hespanha
Historiador. In História, nº 69, Setembro, 2004, p. 82

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