17.12.04

Vasco Câmara sobre "2046"

(...) Mas o realizador assumiu ali mesmo que, não fosse a data de um festival a marcar um prazo, o filme poderia ser terminado de outra forma (assim aconteceu: basta comparar o que está hoje nas salas com o filme que Cannes viu) ou a tarefa continuar para sempre.

Porque Wong Kar-wai, qual astronauta de um planeta que nunca se revela por inteiro (de que é difícil explicar o segredo, fica sempre uma incógnita), começa os filmes sem argumento e sem prazos, apenas com actores (que têm de se comprometer por anos...) e uma ideia. Que muda, que é desviada para outros percursos. Que é objecto de aproximações várias que iluminam zonas e personagens, obscurecendo outras - e depois pode ser ao contrário.

Na verdade - é a obra que o mostra - não se pode dizer que este cineasta parta para "um" filme. "Um" filme - assim aconteceu com "Days of Being Wild" ou "Chungking Express", com "Anjos Caídos" ou "Disponível Para Amar" - não é uma entidade distinta, é a imobilização, num momento do tempo, e por contingências várias (às vezes acidentes de produção), de uma mesma corrente de histórias e personagens que está em movimento.

Cada filme é sempre uma variação a partir de uma mesma matéria. E cada filme conta as aventuras e desventuras do realizador no momento da concretização. Hipótese: "2046" conta a história de Wong Kar-wai num momento de crise, a seguir ao sucesso e à perfeição de "Disponível Para Amar", o filme anterior que se agigantou como um fantasma. "2046" demorou quatro anos a ser feito - tempo de bloqueio do realizador, de procura de uma saída. É um filme de alguém intimidado pelo passado, mas é um filme em que o realizador, como uma vítima entregando-se às delícias de um algoz, lida com as suas dificuldades fazendo a súmula das histórias e personagens (e até diálogos) que já antes imobilizara.(....)

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