14.9.04

Sobre a entrevista de Agualusa e os seus comentários a Saramago.

O Horácio publicou uma passagem da entrevista de Eduardo Agualusa na revista Época em que, em termos bastante críticos, se referiu a Saramago (ver post abaixo).

Nesse trecho há 4 níveis de afirmações criticas que convém analisar:

1ª “Não gosto dele”.

2ª “Saramago cultiva o niilismo. É um pessimista que não acredita na vida e seus livros são contaminados pelo desencanto.”

3ª “Em seu último livro, Ensaio sobre a Lucidez, Saramago faz a defesa do voto em branco, o que é ridículo, pois ele se candidatou como deputado pelo Partido Comunista. José Saramago é vítima da própria descrença”.

4ª “É um velho”.

Relativamente a primeira afirmação “Não gosto dele”.É logicamente a mais fácil de comentar:

Se pensarmos em termos meramente estéticos ou temáticos, gostar ou não gostar está no direito de cada um. Como diz o amigo Vítor Hugo, gostos não se discutem, lamentam-se.

O problema para mim, é que no contexto em que o diz, não fica claro se é apenas da escrita de Saramago que Agualusa não gosta. Parece haver uma crítica ao homem e no entanto, o homem Saramago, não devia ser para aqui chamado, nem posto em causa.

Quanto ao segundo conjunto de afirmações:

Comecemos pois pelo significado de niilismo:
Se procurarmos o termo num dicionário veremos que vem do Latim: nihil = nada, redução ao nada; descrença absoluta;

Numa enciclopédia encontraremos:

- doutrina política russa que recusava toda e qualquer imposição social e que defendia que o progresso da sociedade só seria possível após a destruição de tudo o que socialmente existe;

- doutrina segundo a qual não existe nada de absoluto (inexistência de realidade substancial) nem possibilidade de conhecimento do real e que, por isso, se caracteriza por um pessimismo metafísico e por um cepticismo relativamente aos valores tradicionais (morais, teológicos, estéticos)


Recorro ainda a “sapiência” do nosso Horácio, que, espero, me perdoará a maneira simplista como o cito de ouvido:

-O termo niilismo quando, usado por Nietzsche, corresponde ao movimento de negação (ie mata Deus- Deus representando o mundo dos valores), mas não cria nada, todos os valores são apenas a negação de valores passados. Niilismo seria uma força destrutiva.

Perante isto, pergunto-me aonde está esse niilismo que Agualusa vê em Saramago?. Quanto a mim não há niilismo nem no escritor, nem no homem. Basta ler “Levantados do Chão” para perceber isto. Poderá de facto haver em Saramago algum desencanto, percebido nos livros mais recentes. Mas o que há sobretudo, é amargura e angustia. Amargura de quem se sente desagradado e impotente perante o caminhos do mundo actual. Angústia própria de quem “está vivo”, própria de um humanista. Não há pessimismo. Saramago é pois “um homem de fé” (parafraseando de novo o Horácio). Fé no homem.

Depois, Agualusa faz eco, mais uma vez, das críticas que muito se ouviram nos últimos tempos: Saramago não era coerente por defender o voto em branco, no livro “Ensaio Sobre a Lucidez”, tendo sido candidato a deputado (salvo o erro euro-deputado) pelo PCP.

Em vários jornais, vários intelectuais (sobretudo de direita) atiraram-se a Saramago com estes argumentos.

Convém no entanto realçar que O “Ensaio Sobre a Lucidez” é uma obra de ficção.

Parafraseando o saudoso Lino de Carvalho “. É uma história bem imaginada, de grande criatividade, que prende o leitor pelo imprevisto, pelo ritmo da escrita mas também porque vai ao encontro das perplexidades, das dúvidas, do desencanto que hoje atravessam, mesmo que subconscientemente, muitos e muitos milhares de cidadãos que não se revêem no funcionamento do sistema de representação institucional existente nem se revêem em nenhuma das forças políticas que se lhes apresentam nos actos eleitorais”.

Ou seja é uma história nada própria de um niilista e tampouco de um comunista, digo eu. Mas Saramago é antes de mais um escritor.

Não sendo “O Ensaio Sobre a Lucidez” um ensaio politico ou filosófico, porque “carga de água” tinham Saramago de ser coerente? Esta distorção quando proferida por Agualusa, apenas torna “a coisa” menos desculpável, pois também ele é um ficcionista e algumas vezes o ouvi defender, correctamente diga-se, o direito do autor de inventar histórias de ficção, libertadas das correntes da realidade.

Será então que o “autor” de ficção Saramago, por ser também o “homem” Saramago de fortes convicções políticas não tem já o direito de se libertar das correntes da sua própria realidade quando cria?

Há ainda o pormenor de Saramago nunca ter sido realisticamente candidato a nada. Esclarece-se: por solidariedade com o seu partido, fazia parte de uma lista de candidatos a deputados, mas, e por sua vontade, em lugar não elegível. Esta questão não devia sequer ser tema de critica pois, como diz, mais uma vez, o Horácio “falem da escrita dele, não dos acidentes”.

Por último a ultima afirmação: “é um velho”. Proferida em tom claramente depreciativo.

O que significa isto: Ser um velho?

Na sociedade ocidental, o velho, o idoso, é tratado como alguém que está à mais. Alguém que é um empecilho, para as famílias porque já não têm autonomia, para os governos porque representam custos (na saúde, nas pensões de reforma, etc.) e para os jovens, porque são lentos e desadaptados da velocidade mundo tecnológico actual.

Nas sociedades tradicionais, em Africa, em Angola, ser velho significa ser-se sábio. O velho é aquele que dá conselhos, é aquele que conhece a tradição, que conhece as curas para as maleitas, aquele que é escutado pelos homens e pelos miúdos.

O sentido em que proferiu a frase “é um velho” foi claramente ocidental e parece-me então que o escritor angolano Agualusa foi muito pouco africano, nessa afirmação. O que está em clara contradição com o resto da entrevista. Não é uma crítica, apenas uma constatação.

Lembro-me de uma música de Caetano Veloso, com um poema lindíssimo sobre o homem velho.

Acabo finalmente nos mesmos termos com que Agualusa se refere a Saramago: Agualusa pode ser um bom escritor. Alguns gostarão dele, outros não. Eu até sou dos que costuma apreciar a sua escrita. Quanto ao homem, que não conheço, não me atrevo a tecer considerações. Ainda assim, acho que esteve muito infeliz nestas referências a Saramago.

PS – Continuo a preferir os escritores velhos. E, já agora, gostar do “velho” Saramago, de forma alguma me impede de gostar do “velho” Lobo Antunes.

9 Comments:

At 10:18 AM, Anonymous Anonymous said...

Boa analise! Eu sou daqueles que ate aprecio os escritos do Agualusa. Em particular as suas cronicas mais do que os livros. Porem e uma tritesa o tipo de comentarios que ele faz sobre o Saramago. Eu que ate nem gosto muito do senhor, concordo plenamente com o Sacha: Nao se deve misturar a obra de uma pessoa com a sua personalidade. A nao ser que essa pessoa trabalhe para caridade... e mesmo assim...
Bom trabalho Sacha.
David
Oxford, UK

 
At 1:40 PM, Anonymous Anonymous said...

This comment has been removed by a blog administrator.

 
At 3:27 PM, Blogger Sacha said...

David, obrigado pelo incentivo e pelas visitas regulares.

Houve um segundo comentário, feito por pessoa anónima, que continha termos insultuosos. Avisa-se aqui que termos de baixo jargão como FdP e PQP serão imediatamente apagados pelos administradores do Blog.

Sugere-se a quem quiser "insultar" que tente pelo menos ser subtil, metaforico, enfim ter algum bom gosto.

 
At 6:05 PM, Blogger Horácio said...

Muito boa a tua reflexão caro amigo Sacha.
Horácio

 
At 6:52 PM, Anonymous Anonymous said...

Pois é... Podes continuar a fazer censura, só porque disse o que devia sobre o Saramago. Olha, mete o blog num sítio que eu cá sei, que vou já eliminá-lo dos meus Favoritos, ó democrata da treta!

 
At 8:34 PM, Blogger Horácio said...

Nem sempre o Abre-surdo atinge o seu propósito: Abre-surdo. Mas respeitamos a surdez daqueles que não querem ouvir, ou que se limitam simplesmente a dizer que não gostam sem exporem qualquer razão. Mas obrigado na mesma. E quanto à censura. Não sei do que falas. O Abre-Surdo é e continuará a ser um blog de debate, partilha de opiniões, sensacões, em suma, mundividências.

Horácio

 
At 10:34 PM, Blogger Sacha said...

Um leitor anónimo fez um comentário usando termos de baixo nível.

Depois, ofendido por ter sido removido, acusou-me de falta de cultura democrática.

Democracia, quanto a mim é nós defendermos as nossas opiniões com base em argumentos e não com insultos redutores.

O leitor até está consciênte disto, e por isso mesmo permaneceu anónimo, porque no fundo tem vergonha da qualidade do seu próprio comentário.

 
At 2:40 PM, Anonymous Anonymous said...

Acho a análise muito boa.

Saramago e Mia Couto são, dos escritores que leio, pela sua capacidade creativa e audácia temática, os que mais me parecem jovens e há mais tempo... questiono em contravenção(a Agualusa): onde se encontra juventude nos livros do José Eduardo ?

Joe

 
At 3:28 AM, Anonymous Anonymous said...

Magnífica a sua explanação e a forma como contrapõe cada argumento... Saramago é um ótimo escritor.. e um crítico dev antes de mas nada respeitar o homem (mesmo sendo um 'velho') e falar sobre a escrita...
Parabéns!!!

 

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