30.10.04

Leituras: crónica de Vicente Jorge Silva, no Diário Económico Da América a Portugal: medo e liberdade ,

“Se tivesse de escolher entre um governo sem jornais e jornais sem governo, escolheria sem hesitar a segunda solução”: a frase é de Thomas Jefferson, pai fundador da democracia americana, e Jacques Julliard recordava-a, recentemente, numa crónica no “Nouvel Observateur” sobre as eleições presidenciais da próxima terça-feira.
Depois de uma viagem de três semanas através dos Estados Unidos, Julliard chegou a esta constatação perturbadora: apesar dos desastres clamorosos da política de Bush – desde a ocupação do Iraque à situação económica interna – “a maioria dos americanos não vê isso: um filme invisível interpõe-se entre eles e a realidade”. E Julliard cita um dos mais prestigiados comentadores americanos, Paul Krugman, que refere, a propósito, o conceito orwelliano de “controlo da realidade”. Mais concretamente: “A realidade não é ou já não é um dado que se impõe a cada um, previamente a qualquer análise. É um parâmetro da acção política, entre outros, que releva de um tratamento apropriado. Da mesma maneira, prossegue Krugman, Bush e a sua administração conseguiram convencer uma parte da opinião de que as suas reduções de impostos a favor dos mais ricos (1% por cento segundo Kerry) são na realidade medidas populares destinadas a ajudar as pequenas empresas e a classe média”.
Julliard considera que “a introdução no interior de um país democrático de processos que relevam da propaganda totalitária, tal como a descreve Hannah Arendt, é aqui uma grande novidade. Ela permite explicar como um povo visceralmente identificado com as liberdades permanece globalmente insensível aos escândalos de Guantanamo ou de Abu Ghraib, ou aos abusos policiais que permitiu o Patriot Act.” Ora, esta situação foi em grande parte favorecida pela permeabilidade dos media à manipulação governamental, mesmo quando esta se revelava particularmente inverosímil e grosseira. Só muito tardiamente é que os media americanos acordaram para a deriva em que, entretanto, tinham embarcado. A extraordinária extensão do actual movimento de apoio a Kerry por parte da grande maioria dos jornais de referência dos Estados Unidos representa, aliás, uma espécie de acto de contrição pelos pecados cometidos. Mas teria sido bem mais avisado que os jornais (incluindo os respeitáveis “New York Times” e “Washington Post”), não se tivessem deixado instrumentalizar pela propaganda e sacrificado os critérios profissionais e o espírito crítico à promiscuidade com as fontes oficiais. Pode haver governos sem jornais, não há é democracia sem imprensa livre. Continuar a Ler

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