Com orgulho e um sorriso nos lábios apregoam ser o pólo contrário.
O que dizer dessa auto-definição pela antítese? Que construtores de ideias são estes que se definem pelo contra valor ? E então se não mais houver o pólo de carga contrária? Implodem ou procuram desesperadamente outra carga contra a qual se possam negativizar?
Claro que é consequente que os narcisos sejam anticomunistas e anticunhalistas. Mas, na sua vaidade, não conseguem deixar de ansiar por momentos como este para poderem regressar ao espaço mediático. Assim se explica a loquacidade incontinente.
Porque, pensadores sérios que são, aparentemente mais não fazem do que deixar esse tão precioso pensamento fluir na onda tele-mediática do momento. E, quando o que está em causa é alguém cuja figura é um verdadeiro desafio para o seu hipertrofiado ego, então não há volta a dar-lhe. Chegam mesmo a dedicar-lhe horas e horas da sua vida, não porque o admirem ou sequer respeitem, também não chegam a odiá-lo ( o que já seria qualquer coisa) , mas porque, no seu delírio megalómano, procuram o desafio que julgam ajustado ao seu intelecto. Chegam ao extremo mau-gosto de empreender exercícios psicanalíticos post-mortem em pleno horário nobre televisivo.
Sempre prefiro a posição de Pedro Mexia quando escreve “Sempre que morre uma pessoa que manifestamente não apreciávamos (uso um enormíssimo eufemismo), o comum «descanse em paz» é o único comentário decente. Nem barbarismo nem hipocrisia.” Indo depois a sua vida, falando dos assuntos que lhe interessam, que lhe dão prazer, com os quais sonha. Os que, amargurados, já nem têm sonhos contentam-se em ser o anti-sonho.
Quando oiço o que oiço e leio o que leio, vem-me a cabeça as palavras de Lipovetsky: (…) É outra coisa que está em jogo: a possibilidade, e o desejo de expressão, seja qual for a natureza da mensagem, o direito e o prazer narcísico de o indivíduo se exprimir para nada, para si apenas mas veiculado e amplificado por um médium.
Da alto da sua cátedra, oiço-os com arrogância negarem-lhe o seu humanismo, porque, dizem, era um revolucionário. Dá-me vontade de reencontrar as palavras de Thoreau , na sua defesa de John Brown, o herói libertador de escravos:
“O navio negreiro cruza o mar carregado de vítimas moribundas; em pleno oceano vem juntar-se-lhe mais carga; a guarnição, um bando de traficantes de escravos (…) relega para os porões asfixiantes quatro milhões de seres humanos, enquanto o político nos quer fazer crer que o único meio decente de libertar as vítimas é a “difusão lenta dos sentimentos de humanidade”, sem recurso à ruptura. Como se os sentimentos de humanidade alguma vez pudessem ser distribuídos comodamente, como quem rega o chão com um regador, para não levantar pó. Que é aquilo que ouço lançar pela borda à fora? São os corpos dos mortos que encontram libertação. É assim que nós difundimos a humanidade e os sentimentos de humanidade.”
Ouço-os imputarem-lhe responsabilidades mil por coisas terríveis. Até lhe vislumbram responsabilidades pela criminosa e sangrenta “descolonização” e posteriores guerras nas ex-colónias.
Como Angolano, rejeito o paternalismo. A responsabilidade do que se seguiu a libertação- e digo "libertação", ao invês de "descolonização", de forma consciente - não é de russos, nem de americanos e nem de portugueses, que já lhes basta a pesada responsabilidade na, não menos sangrenta e crimonosa, colonização. A responsabilidade é sobretudo nossa: Dos que se libertaram (os "descolonizados”, na vossa linguagem). Não queremos mais ser coitadinhos inimputáveis. E só digo “sobretudo nossa” ao invés de “totalmente” porque não quero esquecer as invasões da países vizinhos Zaíre e África do Sul.
O pior é que estas coisas que leio e ouço não resultam de falta de conhecimento. O problema é justamente o contrário: Os "detentores" do "conhecimento" e da "verdade" estão conscientes da reverencia que pulula a sua volta e não hesitam. Em alguns casos é por um mero exercício de estilo e procura de originalidade - Certamente porque desconhecem as palavras do genial músico Ornette Coleman: “não há estilos baseados na liberdade. O estilo é sempre uma prisão” mas intuem, acertadamente que “ o conceito de repetição é o estilo que mais facilmente leva ao sucesso” -. Noutros casos trata-se da instrumentalização desse conhecimento com um objectivo já mais preocupante: anular pela confusão e pelo ruído. Eis o primeiro passo para o ambicionado revisionismo histórico.
Não me espanta que dentro de poucos anos os nossos filhos aprendam que ele é que foi o grande culpado da ditadura. Porque o ditador não tinha alternativa . O “verdadeiro” perigo era vermelho.
Em tempos de efemeridade, ninguém tem memória. Os que a têm, fazem dela propriedade e acham que todas as metamorfoses históricas são boas de se atirar para cima da mesa. Pode-se dizer o que se quiser, a verdade é relativa. Tudo é pensamento válido e portanto deve ser encorajado como exercício de liberdade de opinião.
Assim, normalizando e anulando tudo o que sobressai, talvez possamos todos viver melhor com a memória da nossa mediocridade colectiva.
Podemos igualar torturador e torturado e dizer que a justiça só não veio punir o torturador porque o torturado era de facto muito, muito feio. É tudo uma questão de perspectiva. Afinal, aquilo que se chamava de tortura, era tão-somente uma cirurgia plástica.
Prefiro ficar com Thoreau:
Ainda que não aproveis os seus métodos e os seus princípios, tereis de reconhecer-lhe a grandeza da alma. (…).
Quando um homem defronta serenamente a condenação e a vingança do género humano e, de corpo inteiro se levanta acima delas (…) ele não precisa do vosso respeito.