"A questão não está se nós acreditamos em Deus.A questão é se Deus acredita em Nós.Em mim, estou certo que Ele não acredita.Em ti tão pouco, Santa."Amador, falando para Santa. Dois personagens do Filme “As segundas ao Sol”Recentemente o videoclube, milagrosamente, disponibilizou o filme “
As segundas ao Sol”. Já o tinha visto, penso que há cerca de um par de anos. Lembro-me de ter ido vê-lo sem grandes expectativas e de ter saído da sala encantado. Com aquela sensação de que tinha descoberto um pequeno tesouro, sentindo vontade de ligar para todos os amigos e usar os argumentos mais persuasivos para convencê-los a irem ver o filme. Ao revê-lo não tinha a certeza que a memória dourada não se fosse esfarrapar, mas bastaram os primeiros dez minutos para compreender que o filme ainda era melhor visto pela segunda vez.
Profundamente humano, mais do que convidar, obriga à experiência de várias sensações ao longo da película: Rimos perante o cómico (que neste filme é sempre trágico); Rimos também perante o absurdo de alguma saudável, mas imprevista, loucura; Sentimos no mínimo vontade de ter coragem para chorar perante a pungente ilustração da vida daquelas pessoas (no que ao choro diz respeito, as mulheres, se calhar são mais corajosas que os homens)
Intensamente realista, o que só é possível porque os actores são tremendos. Todos: os que interpretam os quatro personagens principais: Santa, Amador, Lino e José e os que interpretam os personagens secundários: Rico – o dono do bar, Nata – filha de rico, Serguei – o emigrante russo, Ana, a mulher de José e Reina – o amigo que trabalha e que se afastou.
É pois um filme em que a arte imita a vida vulgar, encontrando nela a poesia superior que a vida que imita a arte desespera por encontrar. Mais correcto seria dizer que neste filme a arte não imita, antes interpreta a vida.·
É um filme sobre personagens e é ao mesmo tempo um filme severamente político. Há uma crítica, quase exclusivamente implícita, ao Neo-Liberalismo, a Globalização. Mas esta crítica só é eficaz justamente porque o filme tem personagens tão humanamente ricas. Não se trata de abstracções de conceitos como "trabalhadores" "desempregados". Trata-se de pessoas. Aliás só num momento do filme e quando ele já vai avançado, é que há um diálogo em que explicitamente vêem ao de cima a questão ideológica, mesmo assim, nunca como um slogan. É nesse momento que ficamos a saber o que se passou efectivamente com aquelas quatro pessoas que estão desempregadas. Até aí e dai em diante, o filme é um filme sobre isso mesmo; quatro amigos todos com mais de 40 anos e que estão desempregados (foram despedidos entre 200 pessoas num estaleiro) e a forma como cada um deles encara essa situação: É Lino (José Luís Egido) que procura teimosamente um emprego que todos os outros sabem que ele não vai conseguir ou porque não tem as habilitações necessárias ou porque já tem demasiada idade; É Amador (Celso Bugallo), que além de desempregado foi abandonado pela mulher e afoga a sua solidão na bebida; É José (Luís Tosar), cuja mulher que tem uma mulher (Ana) com quem ele não consegue conversar, mas que lhe vai dando ainda o equilíbrio mínimo necessário para que ele não descambe como Amador, Ana (Nieve de Medina), trabalha para sustenta-los, o que contribui ainda mais para a diminuição da auto-estima de José; e é finalmente Santa (Javier Bardem), aquele que é, poderíamos dizer, a personagem principal do filme, sobretudo pelas suas características de quase líder do grupo.
Se os actores são todos magníficos,
Javier Bardem pela sua interpretação de Santa merece uma referência à parte. Não realidade, pelo tempo dedicado a cada um das personagens, é duvidoso que o realizador pretendesse dar mais relevo a Santa. Só que Bardem torna esta personagem simplesmente inesquecível. Mesmo para quem já tenha visto muitos filmes com Bardem, acho difícil lembrar que é ele: não é só a barba, nem a maneira como é filmado parecendo mais alto e robusto, é sobretudo a densidade da personagem, finamente caracterizada.·
Santa é o atrevido do grupo, o mulherengo, o inconveniente, o que desafiou a autoridade. É um homem duro, que não mede as palavras e não se coíbe de atirar com a realidade e com os factos do passado à cara dos seus amigos (as traições e desistências naquela que foi a luta comum). De alguma forma, sem ter um discurso claramente político, Santa é aquele que transmite mais claramente a mensagem política a que o filme não pode, nem parece (e ainda bem) querer escapar. Neste capítulo, além do tal diálogo acima referido, a parte em que Santa lê a história da formiga e da cigarra para uma criança, mais do que cómica, é ilustrativa:"
esta história está mal contada" diz "
essa formiga é uma especuladora e o que o livro não diz é porquê que uns nascem formigas e outros nascem cigarras".
É também um filme sobre a amizade. Uma amizade entre de homens duros, de poucas ou gaguejantes palavras, mas é uma amizade sem falsos sentimentalismos e sem condescendências. Homens que estão ligados, como dizia Amador, "
como siameses: um cai, o outro ri-se, antes de perceber que caiu também."
Uma palavra ainda para a o soberba banda sonora do filme da autoria de Lúcio Godoy: Além do tema principal, há apenas mais 2 ou 3, mas as melodias de todos eles são simples, lindíssimas e certeiras e foram incorporadas na montagem de forma irrepreensível.
"As segundas ao Sol" é um filme abre surdo, abre pálpebras, abre cérebro, abre coração. Um dos meus preferidos de sempre.